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domingo, 24 de outubro de 2010

Prescrição retroativa e a Lei 12.324, de 5 de maio de 2010

Válter Kenji Ishida
Promotor de Justiça das Execuções Criminais e Professor Universitário
Autor do Curso de direito penal, processo penal e prática jurídica penal todos publicados pela Editora Atlas

    I - Introdução. A prescrição é tratada no Código Penal como uma das causas de extinção da punibilidade (art. 107, inciso IV, primeira figura do CP). Doutrinariamente, existem dois tipos básicos de prescrição: o da pretensão punitiva e o da pretensão executória.
    Quanto à prescrição da pretensão punitiva, existem quatro formas mencionadas pela doutrina: a prescrição virtual ou antecipada (atualmente rechaçada pela súmula 438 (numeração provisória) do STJ), a prescrição retroativa, a prescrição intercorrente e a prescrição propriamente dita.
    O objetivo da novíssima lei, segundo o art. 1º é o de “excluir a prescrição retroativa.” O fundamento da admissão da prescrição retroativa seria o da pena justa. Não há como negar que existe um sentimento de impunidade na admissão das mais variadas formas de prescrição que acabou sensibilizando o legislador da Lei nº 12.234/10. Já na exposição de Motivos do Código Penal de 1969 havia menção de que a admissão da prescrição pela pena em concreto comprometia gravemente a eficiência e seriedade da repressão (conforme Damásio de Jesus, Direito penal, parte geral, 24ª edição, p. 734).
    II – Escorço histórico do surgimento da prescrição retroativa. Pela antiga Parte Geral do CP (1940), a pena da sentença servia de base para a prescrição a partir da publicação da sentença condenatória (art. 110, parágrafo único da Parte Geral do CP de 1940).  Tratava-se de prescrição da pretensão punitiva porque não havia o trânsito em julgado para a defesa. Não havia admissão de se contar para trás, de forma retroativa. O panorama foi alterado com a interpretação do STF, consagrado pela Súmula 146 do STF editada em 1961, verbis: “a prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação.” Assim, embora a prescrição não pudesse ser reconhecida com base na pena máxima, poderia ser admitida com supedâneo na pena aplicada na sentença. Bastaria o trânsito em julgado para a acusação ou o improvimento do seu recurso. Nesse caso, poder-se-ia falar em retroativa porque haveria um retorno entre as causas de interrupção previstas no art. 117 do Codex até aí existentes: entre a data do fato e do recebimento da denúncia ou queixa; entre esta e a decisão interlocutória de pronúncia; entre esta e a sentença condenatória. A súmula editada na década de 1960 foi o marco de admissibilidade da prescrição retroativa, mas a partir de 1970, passou a sofrer restrições, exigindo-se sentença condenatória, existência de recurso da defesa e inexistência de recurso da acusação e possibilidade de contagem somente entre a data do recebimento da denúncia ou queixa e da publicação da sentença (conforme Damásio E. de Jesus, Direito penal, parte geral, 24ª edição, p. 732). Essa restrição abrangia a vedação de se admití-la entre a data do fato e o recebimento da denúncia ou queixa. Esse posicionamento se prolongou até final de 1974, quando a troca de Ministros do STF reacendeu o debate, predominando a corrente mais liberal. Mais ainda, o Decreto-lei nº 1.004 que instituia o Código Penal de 1969 previa expressamente em seu art. 111, § 1º que “A prescrição, depos de sentença condenatória de que somente o réu tenha recorrido, regula-se também, daí em diante, pela pena impsta e verifica-se nos mesmos prazos.” Com essa redação, deixou claro o legislador a vedação à prescrição retroativa. Em contrapartida, o Projeto de Lei 1.457, de 1973 que apresentou emendas ao CP de 1969, passou a acatar a Súmula146, suprimindo a expressão “daí por diante” e condicionando o trânsito em julgado paraa acusação. A Lei n. 6.016/73, que alterou o CP de 1969 passava a admitir expressamente a prescrição retroativa. Mas em solução diametralmente oposta, a Lei 6.416/77,alterando o CP de 1940, passou a eliminar essa interpretação elástica geradora da impunidade e se referia à prescrição depois do trânsito em julgado para a acusação e pela pena aplicada (art. 110, § 1º) como “renúncia do Estado à pretensão executória” (conforme Damásio E. de Jesus, Direito penal, parte geral, 24ª edição, p. 735).
   
    III - Procedimento técnico elaborado pelo legislador da Lei 12.234/10. No escopo de ceifar a prescrição retroativa, o legislador suprimiu no art. 109, caput a anterior menção ao § 2º do Código Penal. Outrossim, logicamente suprimiu o § 2º do art. 110. Este era consagrado pela doutrina como a norma que fundamentaria a prescrição retroativa.  Mais: o legislador no art. 110, § 1º, ao se referir à prescrição depois do trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido o seu recurso, regulando-se pela pena aplicada, vedou expressamente admitir termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa. Finalmente, modificou a prescrição no caso de pena máxima inferior a um ano, elevando de 2 (dois) para 3 (três) anos.  Um erro de técnica do legislador foi a de extirpando o § 2º do art. 110, ter mantido a menção § 1º. Como há um só parágrafo atualmente, o § 1º deveria ter-se transformado em “parágrafo único.”
   
    IV - Efeito prático da alteração legislativa. A alteração significativa e diretamente prática foi a de elevar a prescrição nos crimes com pena inferior a 1 ano. Assim, p. ex., um crime de lesão leve com pena aplicada de 3 meses, terá um pouco mais de dificuldade para prescrever. Deveria ter também elevado a prescrição para os crimes com pena igual a um ano ou sendo superior não excede a 2 anos (art. 109, IV), porque grande partes dos delitos de médio potencial lesivo possuem pena nesse patamar (v.g. o estelionato, o furto simples, a receptação simples etc).
    a) Irretroatividade da alteração da Lei nº 12.234/10. Tratando-se de alteração de norma penal, a retificação do Código Penal é sem dúvida alguma, mais prejudicial ao réu. Logo só vigora a partir da data da publicação (06.05.2010), conforme estipula o art. 3º da referida Lei. Não pode haver aplicação imediata, sem avaliação do prejuízo ao réu, como faz a norma processual penal (art. 2º do CPP). Assim, os crimes consumados até 05 de maio de 2010 poderão ser beneficiados com a antiga redação da lei penal. Assim, admite-se a prescrição retroativa para esses casos entre a data do fato e do recebimento da denúncia, mesmo com os autos do processo-crime em andamento. Prolatada a sentença condenatória e inexistindo o recurso da acusação, é possível reconhecer-se ainda essa prescrição com esses dois termos. Trata-se de hipótese de ultratividade da lei penal já revogada, mas que ainda possui efeitos para os crimes consumados na sua vigência. Os crimes consumados a partir de 06 de maio de 2010, não mais terão a admissão da prescrição retroativa.
    b) Fim da prescrição virtual. A prescrição virtual era feita principalmente em sede de arquivamento com base na pena a ser aplicada pelo juiz. Considerando as circunstâncias do art. 59 do CP e a fixação da pena-base, as possíveis causas de aumento e diminuição e mais as circunstâncias atenuantes e agravantes, o membro do MP promovia o arquivamento tendo em vista a pena em concreto a ser aplicada. Também era utilizada como fundamento do magistrado de primeiro grau para não prolatar sentença de mérito, julgando extinta a punibilidade com fulcro na referida prescrição antecipada. Falava-se então em falta de interesse de agir, já que de nada adiantava um processo onde fatalmente haveria o reconhecimento da prescrição retroativa quando da prolatação da sentença. Nesse caso, a prescrição incidiria entre a data do fato e do recebimento da denúncia ou queixa. Como pela primeira interpretação que provavemente deve prevalecer, não mais se admite a prescrição retroativa nesse caso, a prescrição virtual passa a não mais ser admitida.
    c) Prescrição retroativa: revogação total ou parcial de suas hipóteses? Passamos a comentar possíveis correntes que surgirão sobre o assunto. Ressalte-se que a grande maioria das hipóteses de prescrição retroativa incidem sobre a data da consumação e o recebimento da denúncia, normalmente ocasionadas pela demora na conclusão do inquérito policial e os vários pedidos de prazo para conclusão do procedimento administrativo. Dificilmente ocorre a prescrição entre a data do recebimento da denúncia e a publicação da sentença, já que o andamento do processo, na maioria dos casos, não é tão lento.
    A prescrição retroativa só foi revogada entre a data da consumação do fato criminoso e o recebimento da denúncia ou queixa. Com o advento da Lei nº 12.234/10, o juiz ou tribunal só admite a extinção da punibilidade entre esses dois termos com base na pena máxima a ser aplicada. Assim, vamos supor um caso prático. Fulano consuma crime de estelionato em 06 de maio de 2010. A denúncia é recebida em 08 de maio de 2014. O juiz publica a sentença em 06 de maio de 2012, com pena de 1 ano, com prescrição portanto em 4 anos. O Promotor não recorre. A defesa também não. Há trânsito em julgado para a acusação. Nesse caso, não se poderia alegar a prescrição entre a data da consumação do estelionato e a data do recebimento da denúncia. Nesse cao, o juiz faz um juízo de admissibilidade da denúncia ou queixa com base na pena máxima. No caso prático, ela não ocorreu. Depois de aplicar a pena em concreto, o juiz não pode mais considerar a prescrição entre esses dois termos, com base na pena aplicada na sentença por expressa disposição do § 1º do art. 110. Poderá contudo considerar entre a data da denúncia ou queixa e a data da decisão de pronúncia e entre esta e a data da publicação da sentença. Assim, incorreto o texto do art. 1º da Lei nº 12.234/10 que fala em “excluir a prescrição retroativa.” Deveria ter falado em “excluir a prescrição retroativa entre a data do fato e do recebimento da denúncia ou queixa.” Se o escopo fosse o banir totalmente a prescrição retroativa, deveria ter copiada a redação do CP de 1969, incluindo a expressão “daí por diante”.
  

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