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domingo, 26 de fevereiro de 2012

Comentários às primeiras alterações propostas pela Comissão do Senado
nos crimes contra a vida

Válter Kenji Ishida
Promotor de Justiça das Execuções Crimininais
Professor Universitário
Autor do Curso de direito penal, Processo Penal e Prática Jurídica Penal, publicados pela Editora Atlas



I - Introdução
Sem certeza de aprovação nos próximos anos, a Comissão do Senado se incumbiu de elaborar um Anteprojeto de Código Penal. Na sexta-feira, dia 24 de fevereiro de 2012 houve audiência pública no Tribunal de Justiça para discussão dos crimes contra a vida.  Com vinte anos de atuação criminal, procuraremos comentar as sugestões de alteração feitas pela Comissão e pelos operadores de direito que discursaram na referida audiência pública. A sugestão da criação foi do Senador Pedro Taques. O mesmo defende um código sistematizado, mas para defender a população. Referido Senador Preside a Comissão de Segurança do Senado. É de se ressaltar que essas alterações são apenas um esboço de alteração.
II – Alterações nos tipos penais
Homicídio simples. A pena do homicídio doloso é mantida pelo Anteprojeto (seis a vinte anos).
Homicídio qualificado. Introduziu-se um novo inciso, o II, qualificando o delito na hipótese de preconceito, raça, cor, etnia, orientação sexual, deficiência física ou mental, condição de vulnerabilidade social, religião, origem, procedência nacional ou em contexto de violência doméstica ou familiar contra a mulher. A ideia parece elogiável. Não é de hoje que existem agressões p. ex. contra homossexuais simplesmente pela opção sexual. A qualificadora da violência doméstica todavia deveria incidir sobre todas as pessoas e não somente da mulher, cf. comentário feito pela Associação dos Advogados de São Paulo, aumentando a incidência da qualificadora.  Outra ideia da Associação dos Advogados de São Paulo foi a de suprimir a pena mínima, aos moldes da legislação europeia. P. ex. o art. 575 do Código Penal italiano prevê a pena mínima de vinte e um anos. Essa é uma ideia para a Comissão refletir. Fora os casos de mídia, é prática comum se aplicar a pena no mínimo legal. A pergunta que se faz é a seguinte: como se comportaria o juiz na sentença, sem uma pena mínima a balizar a sua dosimetria.
Uma outra sugestão feita pelo promotor de justiça Fauzi Hassan Choukr na audiência pública foi a inclusão do uso de arma de fogo e do concurso de pessoas simples como qualificadoras. A questão da arma de fogo é bastante interessante. Comumente repele-se o crime de porte ilegal de arma (e a maioria dos homicídios é praticado com as chamadas “armas frias”) e este crime fica absorvido pelo princípio da consunção pelo delito de homicídio. Como ressaltou referido Promotor, não se pode equiparar um crime praticado com arma de fogo com outro praticado com arma branca.
Homicídio culposo. A pena mínima e máxima são aumentadas. Ressalte-se que o crime de homicídio culposo do Código Penal caiu em desuso diante da criação do homicídio culposo ao volante, prevalecendo pelo princípio da especialidade o art. 302 do CTB.
Culpa gravíssima no homicídio culposo. O Anteprojeto cria a figura da culpa gravíssima (parágrafo 5º.) no caso de “excepcional temeridade”. No caso do crime culposo, haveria uma graduação da culpa que iria da levíssima, passaria pela leve e grave e atingiria o ápice na gravíssima. Seria uma avaliação do grau de descuido do agente. A culpa gravíssima se enquadraria entre o dolo eventual e a culpa consciente. Seria um quase dolo eventual.  Na culpa consciente, o agente prevê o resultado, ou seja, possui uma vontade e uma visualização com relação com o resultado. Mas não concorda, acha que não vai realizar o mesmo. Estou dirigindo em excesso de velocidade, acho que posso atropelar alguém, mas acho que isso não vai acontecer. Todavia, mesmo não concordando com o resultado, objetivamente realizo uma conduta temerária, não recomendável: embriaguei-me demasiadamente, imprimo uma velocidade excessiva para o local, realizo manobras não recomendáveis para o local.
Luiz Flávio Gomes (Crimes no trânsito: culpa temerária e eficientismo penal, “in” www.cartaforense.com.br; acesso em 26.02.2012) aborda o tema:
“diante da insuficiência do sistema penal atual o dolo eventual passou a ser visto como a "solução" para o problema. É extremamente complexo distinguir o dolo eventual da culpa consciente. Mais complexo ainda é provar o dolo eventual, que exige a aceitação do resultado pelo agente. O enquadramento dos delitos como dolo eventual satisfaz os desejos emocionais e vingativos da mídia, dos familiares das vítimas, dos políticos e dos legisladores (ressalvadas as honrosas exceções), mas isso é feito com muita distorção dogmática (técnica).  Estão "forçando a barra" na tipificação como dolo eventual para que os abusos no trânsito sejam devidamente reprimidos. Tecnicamente isso é um absurdo. É preciso acabar com essa anomalia.   Possível solução: a solução, consoante nossa opinião, está em reconhecer a culpa temerária (que é a culpa gravíssima), que fica entre a culpa consciente e o dolo eventual. O homicídio culposo no trânsito hoje é punido com pena de 2 a 4 anos de detenção (art. 302 do CTB). No caso de culpa temerária (gravíssima) a pena (essa é nossa sugestão) seria de 4 a 8 anos de prisão. A redação seria a seguinte: "No homicídio culposo a pena será de 4 a 8 anos de prisão quando comprovada a embriaguez ao volante, a participação em corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade, a velocidade excessiva superior à metade da permitida ou qualquer outra causa reveladora de culpa gravíssima".”
O conceito decerto, aplica-se atualmente p. ex. aos delitos de trânsito envolvendo embriaguez ou a hipótese de concurso formal. De qualquer forma, tal parágrafo melhor se adequaria ao CTB por incidir nos delitos de trânsito.
Causas de aumento no homicídio culposo. Houve no Anteprojeto, uma alteração nas causas de aumento no homicídio culposo. Extirpou-se com razão, a inobservância de regra técnica, de profissão, arte ou ofício. Essa é uma causa de aumento modalidade culposa, explicava-se que o agente era habilitado, mas não conhecia a regra. Na causa de aumento, conhece, mas não observa a regra. As causas de aumento passam a se referir à culpa gravíssima. A omissão de socorro é mantida, mas introduzida a ressalva da a fazer prova contra si mesmo.
Perdão judicial. O instituto do perdão é aperfeiçoado. Nesse caso, citam-se as pessoas beneficiadas, inserindo dois motivos: o agente deve estar ligado por estreitos laços de afeição ou quando atingido de forma comprovadamente grave.
Eutanásia. O Anteprojeto prevê no art. 122 o crime específico de eutanásia, incluindo o matar por piedade ou compaixão pessoa em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido. Passa-se do anterior motivo de relevante valor moral, individual.
Perdão judicial. O juiz poderá deixar de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso e a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
Atipicidade da ortotanásia. A ortotanásia é a interrupção dos procedimentos artificiais que mantêm a sobrevida de pacientes em estado de coma irreversível. Há uma excludente de atipicidade na hipótese do agente deixar de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente. Trata-se de uma prática existente nos hospitais de deixar de fazer o tratamento ou parar de funcionar determinado aparelho quando inexiste mais chances para um retorno.  Existe também tramitando no Senado o PLS 116/00 permitindo essa prática.
Participação no suicídio. São mantidas as mesmas características do tipo atual. Infantício. Mantém-se o mesmo tipo, mas pune-se com a pena de homicídio simples, a participação e a coautoria. É discutível a utilidade prática de manutenção desses dispositivos.
Aborto. A gestante é mais protegida, instituindo pena de Jecrim (até dois anos). O mesmo com relação ao agente que realiza o aborto com o consentimento da gestante. A pena do aborto sem o consentimento é aumentada, mas deveria haver previsão da regra do art. 126, parágrafo atual. Excludentes de tipicidade: mantêm-se as hipóteses, mas inclui-se a anencefalia ou por vontade da agente até 12ª. Semana. Nesse caso, o médico deverá atestar que a gestante não possui condições psicológicas para arcar com a maternidade. O tempo de doze semanas seria o limite em que aí iniciar-se-ia a criação do sistema nervoso central.
III – Conclusões
A parte dos crimes contra a vida não contém grandes alterações relativas ao combate à impunidade. Por outro lado, traz algumas atualizações atualmente destacadas pela doutrina e jurisprudência penais como a permissão do aborto no caso de anencefalia e no aborto até 12 semanas de gestação e da punição com maior rigor do partícipe e do coautor no autoaborto. Outro destaque é a descriminalização da ortotanásia. Assim, questões como a liberalização de casos como o aborto e a ortotanásia que acontecem com frequência foram enfrentadas pela Comissão. Todavia, no crime principal, o do homicídio, a única questão tratada com maior rigor é da culpa gravíssima, sem incidência na prática porque deve ser alterado o Código de Trânsito Brasileiro. Deve a Comissão tratar com maior rigor o homicídio doloso, elevando a sua pena mínima (p. ex. para 20 anos) e prevendo no próprio tipo penal para uma maior agilização, patamares maiores para a progressão ao regime semiaberto (p. ex. metade da pena).

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